quinta-feira, 7 de agosto de 2014

PROCRASTINAR. Pe. Vitor Hugo Gerhard



            Andando pelas comunidades terapêuticas, se ouve com frequência a palavra “procrastinar” aplicada no sentido que lhe dá o dicionário da língua portuguesa: adiar, deixar para depois, ‘empurrar com a barriga’. Este termo (procrastinador) é aplicado aos residentes que, dentro da CT, vão adiando as tarefas, desviando a atenção do programa de recuperação e fazendo o mínimo do mínimo, apenas para passar o tempo. Também é conhecida a expressão ‘passar de barriga’. O verbo é difícil de ser conjugado no presente do indicativo (eu procrastino, tu procrastinas... vós procrastinais...), mas é muito fácil de ser aplicado: basta não fazer o que lhe compete neste momento, achando que o fará no futuro oportuno. O tempo procrastinado não volta mais. O psiquiatra Scott Peck, em seu livro ‘A trilha menos percorrida’ afirma que cometemos um erro básico na execução das tarefas: diante da necessidade de realizar uma tarefa prazerosa e outra desagradável, escolhemos fazer primeiro aquela que nos dá satisfação. Só que, a lembrança da outra, acaba por enfraquecer o resultado da primeira, pois o fazemos misturando os sentimentos.
            Tenho a impressão que esta postura e mentalidade tenha sua origem em duas raízes diferentes: a) uma raiz está nas pessoas que buscam ajuda na CT, mas que não estão ainda suficientemente convencidas que a recuperação depende fundamentalmente delas mesmas e não dos recursos técnicos oferecidos pela casa. São aquelas pessoas, homens e mulheres, que se encostam na CT como se ela fosse um pequeno oásis no árido deserto da drogadição. “Neste grupo se enquadram os repetentes, os ‘recaídos” que voltam mais de uma vez para a CT e dizem de boca cheia e de peito estufado “este é meu terceiro tratamento”. Ao que eu contesto. Este é o primeiro tratamento, pois nos outros períodos residenciais você não fez direito a sua parte; apenas passou pela CT. Não existe esta de “voltar para por um remendo novo na calça velha”: o remendo e a calça não ficarão bons; b) outra raiz são as comunidades terapêuticas que fragilizam a proposta de recuperação acreditando que ‘facilitando’ as coisas estarão respeitando os direitos humanos do residente. São aquelas CTs que substituem a terapia ocupacional pelo comprimido que acalma as dores, mas não erradica as suas causas; são as CTs que massificam a aplicação do programa de recuperação, nivelando o modo de tratar os residentes como se eles fossem todos iguais. Pior, nivelando-o pelos mais fracos e debilitados; são as CTs que cercam o indivíduo de tantas e tamanhas estruturas que acabam sufocando a iniciativa pessoal, necessária e fundamental neste processo de recuperação e fazendo dos residentes apenas marionetes bem comportados ou cobaias mal sucedidos.
            Diante da constatação de que pode haver uma falsificação no processo de conversão proposto pelo método das CTs, desejo apresentar uma reflexão inspirada no texto bíblico de Mc. 2, 1-12. Esta reflexão foi apresentada por uma teóloga competente no Congressosul’2014 promovido pela Igreja Batista Montserrat e realizado em Porto Alegre no mês de julho passado. Sirvo-me do seu esquema para fazer a leitura do texto em questão, relacionando com o tema proposto desde o início, isto é, a restauração da vida como um processo pessoal, participativo e transcendente. Vejamos inicialmente o texto em questão:

Mc. 2, 1-12: Alguns dias depois, Jesus entrou novamente em Cafarnaum e souberam que ele estava em casa. Reuniu-se uma tal multidão, que não podiam encontrar lugar nem mesmo junto à porta. E Ele os instruía. Trouxeram-lhe um paralítico, carregado por quatro homens. Como não pudessem apresentar-lho por causa da multidão, descobriram o teto por cima do lugar onde Jesus se achava e, por uma abertura, desceram o leito em que estava o paralítico. Jesus, vendo-lhes a fé, disse ao paralítico: "Filho, teus pecados te são   perdoados." Ora, estavam ali sentados alguns escribas, que diziam uns aos outros: "Como pode este homem falar assim? Ele blasfema. Quem pode perdoar pecados senão Deus?" Mas Jesus, penetrando logo com seu espírito nos seus íntimos pensamentos, disse-lhes: "Por que pensais isto nos vossos corações? Que é mais fácil dizer ao paralítico: teus pecados são perdoados, ou dizer: Levanta-te, toma o teu leito e anda? Ora, para que conheçais o poder concedido ao Filho do homem sobre a terra (disse ao paralítico), eu te ordeno: levanta-te, toma o teu leito e vai para casa." No mesmo instante, ele se levantou e, tomando o leito, foi-se embora à vista de todos. A multidão inteira encheu-se de profunda admiração e puseram-se a louvar a Deus, dizendo: "Nunca vimos coisa semelhante."
            Porque acreditamos que os 12 Passos de AA são importantes no processo de recuperação em dependência química e que, junto a outros métodos, tem ajudado efetivamente na recuperação de pessoas atingidas pela chaga da drogadição, procuraremos fazer a reflexão nos servindo desta estrutura. Esta narração bíblica nos coloca imediatamente diante dos três primeiros passos de AA (a entrega), se refere aos passos 6º e 7º (a mudança de vida) e realiza os passos 11 e 12 (a gratidão). O texto nos apresenta cinco tipos de personagens, cada um deles com sua função na narração.

O paralítico é o enfermo, o mais fraco da história e merecedor de compaixão. Ele está debilitado e frágil. Parece ser a personagem central da narração. O paralítico se parece com o usuário de drogas que pede ajuda, alguém que perdeu e que precisa de amparo. Ele passa a ser a pessoa mais importante naquele lugar e naquele momento. Assim também a família que participa pela primeira vez de um grupo de apoio, é recebida como a mais importante naquela reunião, pois ela também pode estar como que paralisada com o sofrimento imposto pelo familiar usuário. A narração bíblica não fala claramente, mas deixa entender que o paralítico estava longe de tudo e de todos, incapaz, com os recursos limitados, longe inclusive de Deus, pois precisava ter seus pecados perdoados. No tempo de Jesus, uma pessoa portadora de enfermidade era tratada com total discriminação, pois a enfermidade era tida como um castigo, uma desgraça, uma maldição. Não é diferente nos tempos de hoje no que diz respeito aos drogaditos: eles se parecem muito com os leprosos do tempo de Jesus: molambentos, maltrapilhos e segregados. Jesus ensina por palavras e atos que é preciso restaurar a vida no corpo e na alma. De pouco valeria a cura física se o homem continuasse a andar por caminhos tortuosos. Da mesma maneira o usuário em recuperação: os caminhos serão outros, as atitudes serão outras, as palavras não serão mais as mesmas. A participação do paralítico no relato pode ensinar aos usuários de droga e a cada um de nós o seguinte:

·         É preciso reconhecer e admitir a própria paralisia (1º, 2º e 3º passos de AA)
·         É preciso arriscar-se na busca da superação (4º passo de AA)
·         É preciso aceitar a ajuda e a intervenção dos outros (5º passo de AA)
·         É preciso não desanimar diante das dificuldade (6º e 7º passos de AA)
·         É preciso tomar atitude, erguer-se e por-se a caminho (8º e 9º passos de AA)
·         É preciso estar disposto a participar do processo do começo ao fim (10º passo de AA)
·         É preciso acreditar no poder superior e anunciá-lo aos outros (11º e 12º passos de AA)

Os amigos, aqueles quatro homens que carregam o paralítico, são os anjos da guarda; eles não desanimam diante da dificuldade e acreditam na possibilidade de recuperação. São os anônimos, aqueles que tem o rosto paterno de um filho pródigo, aqueles que tem os braços do bom pastor, aqueles que, movidos pela compaixão, tomam a iniciativa e se tornam agentes de mudança. Os amigos nem sempre tem nome ou são conhecidos pelo nome, pois seus nomes estão inscritos no céu. Tão importante quanto o usuário de drogas são aqueles que gravitam em seu redor. Esta imensidão de gente, os voluntários nas comunidades terapêuticas (só no Rio Grande do Sul são mais de duas mil pessoas) que semanalmente doam um pouco do seu precioso tempo para a restauração de vidas em perigo. São um exército de voluntários que “amando pessoas, cuidam bem delas”. Geralmente pergunto aos residentes qual foi a pessoa decisiva que os levou a tomar a atitude de procurar ajuda. Alguns dizem ter sido a mãe, a mulher, um filho ou uma filha, um agente da saúde, uma autoridade pública, etc. Todos são capazes de identificar aquele (aquela) que lhe carregou nos braços por cima dos telhados. Estes visionários da caridade são os que cultivam um coração humanizado e sensível e nos podem ensinar que:

·       É preciso sair da própria zona de conforto e aventurar-se
·       É preciso acreditar no milagre e participar dele
·      É preciso acreditar também em quem está paralisado pela dor


Um comentário:

  1. Uma grande reflexão. É preciso ir em frente,crer e acreditar na mudança. Mas precisamos principalmente acreditar que temos a força da FÉ.

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