Andando pelas comunidades terapêuticas, se ouve com
frequência a palavra “procrastinar” aplicada no sentido que lhe dá o dicionário
da língua portuguesa: adiar, deixar para depois, ‘empurrar com a barriga’. Este termo (procrastinador) é aplicado
aos residentes que, dentro da CT, vão adiando as tarefas, desviando a atenção
do programa de recuperação e fazendo o mínimo do mínimo, apenas para passar o
tempo. Também é conhecida a expressão ‘passar
de barriga’. O verbo é difícil de ser conjugado no presente do indicativo
(eu procrastino, tu procrastinas... vós procrastinais...), mas é muito fácil de
ser aplicado: basta não fazer o que lhe compete neste momento, achando que o
fará no futuro oportuno. O tempo procrastinado não volta mais. O psiquiatra
Scott Peck, em seu livro ‘A trilha menos percorrida’ afirma que cometemos um
erro básico na execução das tarefas: diante da necessidade de realizar uma
tarefa prazerosa e outra desagradável, escolhemos fazer primeiro aquela que nos
dá satisfação. Só que, a lembrança da outra, acaba por enfraquecer o resultado
da primeira, pois o fazemos misturando os sentimentos.
Tenho a impressão que esta postura e mentalidade tenha
sua origem em duas raízes diferentes: a) uma raiz está nas pessoas que buscam
ajuda na CT, mas que não estão ainda suficientemente convencidas que a
recuperação depende fundamentalmente delas mesmas e não dos recursos técnicos
oferecidos pela casa. São aquelas pessoas, homens e mulheres, que se encostam na
CT como se ela fosse um pequeno oásis no árido deserto da drogadição. “Neste
grupo se enquadram os repetentes, os ‘recaídos” que voltam mais de uma vez para
a CT e dizem de boca cheia e de peito estufado “este é meu terceiro
tratamento”. Ao que eu contesto. Este é o primeiro tratamento, pois nos outros
períodos residenciais você não fez direito a sua parte; apenas passou pela CT.
Não existe esta de “voltar para por um remendo novo na calça velha”: o remendo
e a calça não ficarão bons; b) outra raiz são as comunidades terapêuticas que
fragilizam a proposta de recuperação acreditando que ‘facilitando’ as coisas
estarão respeitando os direitos humanos do residente. São aquelas CTs que
substituem a terapia ocupacional pelo comprimido que acalma as dores, mas não
erradica as suas causas; são as CTs que massificam a aplicação do programa de
recuperação, nivelando o modo de tratar os residentes como se eles fossem todos
iguais. Pior, nivelando-o pelos mais fracos e debilitados; são as CTs que
cercam o indivíduo de tantas e tamanhas estruturas que acabam sufocando a
iniciativa pessoal, necessária e fundamental neste processo de recuperação e
fazendo dos residentes apenas marionetes bem comportados ou cobaias mal
sucedidos.
Diante da constatação de que pode haver uma falsificação
no processo de conversão proposto pelo método das CTs, desejo apresentar uma
reflexão inspirada no texto bíblico de Mc. 2, 1-12. Esta reflexão foi
apresentada por uma teóloga competente no Congressosul’2014 promovido
pela Igreja Batista Montserrat e realizado em Porto Alegre no mês de julho
passado. Sirvo-me do seu esquema para fazer a leitura do texto em questão,
relacionando com o tema proposto desde o início, isto é, a restauração da vida
como um processo pessoal, participativo e transcendente. Vejamos inicialmente o
texto em questão:
Mc. 2, 1-12: Alguns dias depois, Jesus
entrou novamente em Cafarnaum e souberam que ele estava em casa. Reuniu-se
uma tal multidão, que não podiam encontrar lugar nem mesmo junto à porta. E
Ele os instruía. Trouxeram-lhe um paralítico, carregado por quatro homens. Como não
pudessem apresentar-lho por causa da multidão, descobriram o teto por cima do
lugar onde Jesus se achava e, por uma abertura, desceram o leito em que estava
o paralítico. Jesus, vendo-lhes a fé, disse ao paralítico: "Filho, teus pecados te são perdoados." Ora, estavam ali sentados alguns escribas, que diziam uns
aos outros: "Como
pode este homem falar assim? Ele blasfema. Quem pode perdoar pecados senão
Deus?" Mas
Jesus, penetrando logo com seu espírito nos seus íntimos pensamentos,
disse-lhes: "Por que pensais isto nos vossos corações? Que é mais fácil
dizer ao paralítico: teus pecados são perdoados, ou dizer: Levanta-te, toma o
teu leito e anda?
Ora, para que conheçais o poder concedido ao Filho do homem sobre
a terra (disse ao paralítico), eu te ordeno: levanta-te, toma o teu leito e
vai para casa." No mesmo instante, ele se levantou e, tomando o leito,
foi-se embora à vista de todos. A multidão inteira encheu-se de profunda
admiração e puseram-se a louvar a Deus, dizendo: "Nunca vimos coisa
semelhante."
|
Porque acreditamos que os 12 Passos de AA são importantes
no processo de recuperação em dependência química e que, junto a outros
métodos, tem ajudado efetivamente na recuperação de pessoas atingidas pela
chaga da drogadição, procuraremos fazer a reflexão nos servindo desta
estrutura. Esta narração bíblica nos coloca imediatamente diante dos três
primeiros passos de AA (a entrega), se refere aos passos 6º e 7º (a mudança de
vida) e realiza os passos 11 e 12 (a gratidão). O texto nos apresenta cinco
tipos de personagens, cada um deles com sua função na narração.
O paralítico é o enfermo, o mais fraco da história
e merecedor de compaixão. Ele está debilitado e frágil. Parece ser a personagem
central da narração. O paralítico se parece com o usuário de drogas que pede
ajuda, alguém que perdeu e que precisa de amparo. Ele passa a ser a pessoa mais
importante naquele lugar e naquele momento. Assim também a família que
participa pela primeira vez de um grupo de apoio, é recebida como a mais
importante naquela reunião, pois ela também pode estar como que paralisada com
o sofrimento imposto pelo familiar usuário. A narração bíblica não fala
claramente, mas deixa entender que o paralítico estava longe de tudo e de
todos, incapaz, com os recursos limitados, longe inclusive de Deus, pois
precisava ter seus pecados perdoados. No tempo de Jesus, uma pessoa portadora
de enfermidade era tratada com total discriminação, pois a enfermidade era tida
como um castigo, uma desgraça, uma maldição. Não é diferente nos tempos de hoje
no que diz respeito aos drogaditos: eles se parecem muito com os leprosos do
tempo de Jesus: molambentos, maltrapilhos e segregados. Jesus ensina por
palavras e atos que é preciso restaurar a vida no corpo e na alma. De pouco
valeria a cura física se o homem continuasse a andar por caminhos tortuosos. Da
mesma maneira o usuário em recuperação: os caminhos serão outros, as atitudes
serão outras, as palavras não serão mais as mesmas. A participação do
paralítico no relato pode ensinar aos usuários de droga e a cada um de nós o
seguinte:
·
É
preciso reconhecer e admitir a própria paralisia (1º, 2º e 3º passos de AA)
·
É
preciso arriscar-se na busca da superação (4º passo de AA)
·
É
preciso aceitar a ajuda e a intervenção dos outros (5º passo de AA)
·
É
preciso não desanimar diante das dificuldade (6º e 7º passos de AA)
·
É
preciso tomar atitude, erguer-se e por-se a caminho (8º e 9º passos de AA)
·
É
preciso estar disposto a participar do processo do começo ao fim (10º passo de
AA)
·
É
preciso acreditar no poder superior e anunciá-lo aos outros (11º e 12º passos
de AA)
Os amigos, aqueles quatro homens que carregam o
paralítico, são os anjos da guarda; eles não desanimam diante da dificuldade e
acreditam na possibilidade de recuperação. São os anônimos, aqueles que tem o
rosto paterno de um filho pródigo, aqueles que tem os braços do bom pastor,
aqueles que, movidos pela compaixão, tomam a iniciativa e se tornam agentes de
mudança. Os amigos nem sempre tem nome ou são conhecidos pelo nome, pois seus
nomes estão inscritos no céu. Tão importante quanto o usuário de drogas são
aqueles que gravitam em seu redor. Esta imensidão de gente, os voluntários nas
comunidades terapêuticas (só no Rio Grande do Sul são mais de duas mil pessoas)
que semanalmente doam um pouco do seu precioso tempo para a restauração de
vidas em perigo. São um exército de voluntários que “amando pessoas, cuidam bem
delas”. Geralmente pergunto aos residentes qual foi a pessoa decisiva que os
levou a tomar a atitude de procurar ajuda. Alguns dizem ter sido a mãe, a
mulher, um filho ou uma filha, um agente da saúde, uma autoridade pública, etc.
Todos são capazes de identificar aquele (aquela) que lhe carregou nos braços
por cima dos telhados. Estes visionários da caridade são os que cultivam um
coração humanizado e sensível e nos podem ensinar que:
·
É
preciso sair da própria zona de conforto e aventurar-se
·
É
preciso acreditar no milagre e participar dele
· É
preciso acreditar também em quem está paralisado pela dor
Uma grande reflexão. É preciso ir em frente,crer e acreditar na mudança. Mas precisamos principalmente acreditar que temos a força da FÉ.
ResponderExcluir