O DESPERTAR ESPIRITUAL EM Lc. 2, 41-52
1. Introdução
Dia
seis de novembro passado estive em Ivorá participando da cerimônia de despedida
do Sr. Davi Sabino Lorenzoni, doador das terras onde está construída a
Comunidade Terapêutica Fazenda do Senhor Jesus, naquele mesmo município. Para
os que não sabem, o Sr. Davi Sabino Lorenzoni, aos 60 anos, doou suas terras
para a realização deste projeto. Ao longo destes últimos 22 anos, continuou
morando na mesma terra e, cuidando dos residentes como os filhos que não teve,
foi cuidado por eles até o último sopro de vida. Morreu na mais absoluta
simplicidade de vida, assim como viveu estes 82 anos, animado por uma fé
robusta e por uma caridade exemplar, nunca perdendo a esperança de uma vida
nova para aqueles que o Bom Deus lhe confiava como rebentos adotivos. Assim foi
a vida do “seu Sabino”, aplaudido e abraçado em todo o terceiro domingo de cada
mês, dia da visita dos familiares na Comunidade Terapêutica de Ivorá.
Neste
dia me veio à mente, com mais insistência, a pergunta que me inquieta há um bom
tempo: o que leva uma pessoa a agir desta maneira, a tomar este tipo de decisão
e gastar sua vida desta maneira, chegando como quem não tem nada e partindo
como quem deixa tudo? O que se passou na mente, no coração e na alma do “seu
Sabino” para que mais de 1.500 homens tivessem a possibilidade de renovar a
vida, sair dos porões da humanidade e caminhar com segurança nas trilhas da luz,
num estilo de vida que se funda no Espírito? Para além das motivações que se
poderia considerar e longe dos contextos sociais e humanos que se poderiam ser
levados em conta numa leitura puramente horizontal, permanece a inquietação
existencial e transcendental: o que leva um homem, ao longo dos 82 anos de
presença nesta terra, testemunhar que é possível viver em doação e
disponibilidade, viver mergulhado em certezas mais profundas, capazes de dar
consistência e sentido a uma vida de aparência frugal, sem poder, sem riqueza e
sem aparente prazer?
Nestes
meus quase vinte anos de mergulho no mundo da drogadição e da recuperação em
dependência química e alcoólica, me foi ensinado que é necessário um “despertar
espiritual” para que um novo estilo de vida se instale na pessoa, preenchendo o
vazio que a levou a procurar no álcool e nas drogas aquele sentido de vida que
não encontrara em outras partes, situações, produtos e atitudes. Pessoalmente
estou convencido de que isso é verdadeiro e real. Se o uso abusivo de álcool e
outras drogas é uma enfermidade multifatorial, que afeta o sistema
neuro/mental, afetivo/emocional, físico, comportamental e espiritual, então, a
busca de superação deverá “vir de dentro” e não ser imposto de fora, como um
remendo a estancar a sangria ou com um comprimidinho para disfarçar os
incômodos provenientes do uso. O controle policialesco das atitudes e o cultivo
de um corpo sarado também não serão soluções permanentes e resolutivas. É certo
que cuidar da mente, do coração, do corpo e das atitudes são todas providências
necessárias para quem deseja ingressar num novo estilo de vida, mas não serão
suficientes senão forem envolvidas por uma membrana chamada espiritualidade que
lhes dará consistência e sentido. Talvez seja por isso que o sistema
ambulatorial e o sistema residencial em leitos hospitalares tem-se mostrado tão
insuficientes no enfrentamento da drogadição, sem resultados promissores.
2. Para
entender melhor
Espiritualidade é um componente de todos os povos e
culturas, em todas as épocas e lugares do planeta. “A espiritualidade é uma
dimensão da pessoa humana que traduz, segundo diversas religiões, o modo de
viver característico do crente que busca alcançar a plenitude da sua relação
com o transcendental. Cada religião comporta uma dimensão específica desta
descrição geral; em todo o caso, se pode dizer que a espiritualidade traduz uma
dimensão do ser humano, enquanto é visto como ser naturalmente religioso, que
constitui, de modo temático ou implícito, a sua mais profunda essência e
aspiração” (Wikipédia). Os variados modelos de espiritualidade, suas raízes
religiosas e culturais nos colocam diante de um mosaico rico nas suas
expressões, multiplo nas suas cores e gradual em sua profundidade. Certamente
que a espiritualidade não é uma “armadura” que vestimos e nos ajustamos às suas
dimensões, forçando e violentando nossa natureza e identidade. Ao contrário,
por espiritualidade se entende aquela experiência única, pessoal e
intransferível do envolvimento consciente com o poder criador que nos atrai.
Espiritualidade é o modo único pelo qual testemunhamos uma vida interior,
nascida nas profundezas do ser, cultivada no terreno fértil das convicções e
expressa em atitudes benevolentes; é a brisa suave na frente da gruta a nos
dizer “vem para fora”...
3. Aspectos
a serem considerados
Talvez seja interessante ainda uma palavra breve sobre as
fontes inspiradoras dos muitos modelos de espiritualidade antes de falarmos
sobre a pessoa e a proposta de Jesus de Nazaré. Para o meu consumo próprio,
utilizo a seguinte distinção: existem fontes, práticas, ritos e instrumentos de
espiritualidade provenientes dos povos orientais (espiritualidades não
teistas), dos povos árabes (espiritualidades monoteistas), do universo semita
(espiritualidade teista do Antigo Testamento), das muitas nações africanas
(espiritualidades politeistas) e a espiritualidade cristã (monoteista radicada
na pessoa de Jesus). É bem verdade que nos tempos atuais encontramos também
propostas ecléticas, miscigenadas e até anti-teistas (espiritualidades sem um
referencial a um poder superior). Todavia, sem querer polemizar, me parece
serem grupos cujas fragilidades são maiores que as virtudes, efêmeros
transitórios e nômades. Entre os que estudam os fenômenos religiosos e de
espiritualidade, há um concenso a ser levado a sério: todo e qualquer fenômeno
religioso e espiritual deve passar pelo crivo deste tripé: a) possuir ritos de
iniciação; b) propor uma profissão de fé; c) estabelecer um código de ética.
Sem isso fica difícil falar em espiritualidade e religiosidade.
Estes são alguns pontos a serem levados em conta nesta breve
reflexão, sobretudo pela presença tão marcante da mentalidade holística que
ingressou no universo simbólico, existencial e programático, neste lado
ocidental do planeta terra. Para os mais criteriosos, holismo é o esforço em
desenvolver uma visão unitária e integradora do ser humano e do universo. Para
outros, é colocar um monte de coisas no liquidificador e ligar na tomada. Ao
menos isso dá “pano pra manga”.
4. A
proposta de Jesus para a espiritualidade.
Tecnicamente falando, a espiritualidade cristã pode ser
resumida nas Bem Aventuranças e na oração do Pai Nosso, entendendo estes dois
textos como um resumo de todos os ensinamentos de Jesus. São textos centrais da
fé cristã e da prática das virtudes apresentadas pela revelação que Jesus
realizou ao longo dos mais de trinta anos de sua vida terrena. Entretanto, isso
parece ser o “mínimo do mínimo” que o cristão pode e deve colocar-se no
seguimento de Jesus. O universo da espiritualidade cristã se estende desde o
Antigo Testamento, passando pelos Evangelhos, as cartas e terminando no
Apocalipse. E neste conjunto de 72 livros, há muito mais do que uma simples
mensagem, ou de bons conselhos; são critérios normativos para a fé, a esperança
e a caridade na vivência de cada um dos seguidores de Jesus. Espiritualidade é
adesão, transformação e seguimento.
Na
quase totalidade das comunidades terapêuticas, o dia começa com a leitura de um
texto bíblico seguido de alguns comentários chamados de “tirar um
discernimento” ou “dar um discernimento”. Na maioria dos casos esta leitura não
tem nenhuma repercussão na vida do residente e no decorrer do seu dia.
Perguntados no fim da tarde sobre o texto lido de manhã, são pouquíssimos os
que ainda se lembram. Portanto, não basta a leitura bíblica se ela não for
transformada numa meta a ser buscada e numa atitude a ser praticada.
Espiritualidade não é apenas um ato mental, teórico ou retórico, ou uma reação
emocional momentânea e passageira. Repito aqui: espiritualidade é adesão a um
conjunto de valores e verdades; é um processo de transformação (conversão) da
vida; é uma decisão de seguimento de um mestre e modelo. Neste sentido, é bom
certa prudência, para não ser chamado de espiritualidade aquilo que não é.
“Quem
crê em Mim e for batizado, será salvo” (Mt 16, 16). “Quem quiser ser meu
discípulo, renuncie-se a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mt 16, 24).
Tenho encontrado muita gente nas comunidades terapêuticas que buscam sinceramente
crescer e evoluir na espiritualidade. Alguns conseguem passar da
espiritualidade meramente funcional e obrigatória (aquela do cronograma) para
um estágio mais evoluído, descobrindo o “sabor” de estar na companhia de seu
Poder Superior, despertando em si mesmo o encantamento da presença de um Deus
de ternura e de bondade. Cultivar isso após o período residencial é outra
questão a ser considerada. Entretanto, não são muitos os que conseguem realizar
de forma satisfatória o processo de mudança de vida, aquilo que chamamos de
abandonar o homem velho e revestir-se do homem novo. Abandonar as práticas
antigas, mesmo que aceitas e legitimadas pela cultura e ideologia circundante
não é tão simples assim e nem sequer para todos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário