5. O despertar espiritual como dom de Deus -
Quando
digo que o despertar espiritual não é para todos e não são muitos os que
alcançarão uma intensidade maior de vida interior, talvez alguns dos meus
leitores se surpreendam com isso e até discordem da afirmação. Estou afirmando
agora, e este é o tema central desta reflexão, que espiritualidade é DOM e não
CONQUISTA. Não é por esforço incansável que alguém chegará a estágios mais
elaborados na sua espiritualidade, a não ser como dom gratuito e iniciativa do
próprio Deus, na forma em que o compreendemos. Estamos falando aqui da
espiritualidade cristã do Novo Testamento, revelada por Jesus e deixada como
Seu testamento pessoal. Para outras raízes espirituais, alguém deveria escrever
outro texto. Vejamos algumas afirmações do próprio Jesus:
• Ninguém
vai ao Pai senão por mim - Jo 14, 6
• Todo
aquele que o Pai me dá, virá a mim e Eu nunca rejeitarei aquele que vem a
mim-Jo 6, 37
• Ninguém
pode vir a mim se o Pai que me enviou não o atrair - Jo 6, 44
• Ninguém
conhece o Pai, a não ser o Filho e a quem o Filho quiser revelar - Mt 11, 27
Há um hino que se canta nas Igrejas e que diz o seguinte:
“me chamaste para caminhar na vida Contigo; decidi para sempre seguir-te, não
voltar atrás. Me puseste uma brasa no peito e uma flecha na alma; é difícil agora
viver sem saudade de Ti... É isso: espiritualidade é chamado e resposta. Assim
foi com o povo judeu na saída do Egito: alguns foram na frente, outros seguiram
pela mesma estrada; alguns até idolatraram e outros foram “de arrasto”. São
sempre graus diferentes de adesão e de vínculo espiritual. Assim também foi e
continua sendo entre aqueles e aquelas que respondem com generosidade ao apelo
da missão, dedicando-se aos mais variados serviços e ministérios, na Igreja e
no mundo. Todos seguem adiante, mas com proximidade maior ou menor, com
encantamento mais intenso ou mais periférico na relação pessoal com quem os
chamou. Assim é também entre as famílias cristãs. Algumas delas (desejaria que
fossem muitíssimas delas) testemunham que é possível, neste mundo dilacerado
por discórdias, viver em comunhão com Deus e fazer disso um sinal de unidade.
Outras tantas tem “o desejo do desejo”, como diria Inácio de Loyola, de viverem
neste entrelaçamento e tirar dele a paz tão necessária em meio a tantas
turbulências. Há outras famílias que seguem no rebanho e caminham como ovelhas
sem pastor, na busca ansiosa de um sentido para a vida.
Entre
os adictos em recuperação, seja no período residência ou passado este, quando
já estão de volta no convívio com os seus, este tema do despertar espiritual
não é menos importante e decisivo na manutenção deste projeto de vida nova.
Tenho encontrado “graduados e graduadas” (homens e mulheres que passaram pelo
programa de recuperação em dependência química) e que desejam permanecer abstinentes
e modificados em seus valores e virtudes, se perguntarem pelo “porque” ser tão
difícil manter uma espiritualidade viva e eficaz... Já escrevi noutra ocasião e
cito aqui: a parábola do semeador (Mt 13, 1-9) é emblemática e nos ajuda a
entender as assim chamadas “moções espirituais” que se movem no interior das
pessoas e que, dependendo da resposta, poderão das frutos os mais variados. A
terra boa, os pedregulhos, a beira da estrada, os espinheiros... são os
terrenos que possuímos; nós os recebemos assim. Em certo sentido, dependerá da
nossa capacidade em sermos bons agricultores a preparar o solo para o plantio,
favorecendo as condições propícias para o despertar espiritual, sem nunca
esquecer que tudo é GRAÇA.
6. Há algo
que se possa fazer?
Lendo este já conhecido texto que nos foi deixado por São
Lucas em seu Evangelho (Jesus aos 12 anos, perdido e achado no Templo), me
pareceu oportuno e próprio para uma aplicação do nosso tema (despertar
espiritual) à realidade dos adictos, tenham eles já passado pelo programa de
recuperação em dependência química numa comunidade terapêutica ou estejam ainda
curvados sob o jugo da drogadição. No meu pensar, costumo dizer que, “quando as
lágrimas caem e os joelhos se dobram”, aí começa o caminho da vida nova. E isso
pode acontecer nas sarjetas da vida ou nas terras benditas de uma comunidade
terapêutica. O que desejo partilhar a seguir é um conjunto de atitudes que nos
podem colocar a caminho nesta busca do despertar espiritual, sem esquecer que
ele é DOM e GRAÇA. Entretanto, aquela outra parábola dos talentos podem nos
sugerir que o Bom Deus, em Seu amor incondicional por nós, poderá nos favorecer
com o alento de uma vida interior mais plena e a necessária consolação para
então praticarmos com maior vitalidade o mandamento do amor. Vejamos este
itinerário que a narração nos oferece:
Lc 2, 42 - Subiram a Jerusalém – conduzir e caminhar junto
A narração nos conta que Maria e José levavam o menino ao
tempo, isto é, a família tinha uma prática religiosa regular. Certamente também
frequentavam a sinagoga em Nazaré. Levar ao templo, freqüentar a Igreja,
participar do culto parece ser uma condição favorável para o despertar
espiritual e seu desenvolvimento. Nos contatos com os residentes nas
comunidades terapêuticas, o que se encontra são pessoas que abandonaram as
práticas religiosas e as muitas formas de piedade pessoal. Há um vazio
religioso profundo, o que acaba por gerar um resfriamento das práticas
religiosas e pelo próprio gosto do mundo religioso. É bem verdade que algumas
Igrejas, em alguns lugares, não oferecem ambiente favorável, sobretudo aos mais
jovens para estas práticas e para o envolvimento inclusive afetivo com a
comunidade de fé.
O que desejamos aqui é sublinhar a necessidade de tomar os
residentes pela mão e ensinar-lhes o caminho da fé, o gosto pela prática
religiosa e as maneiras adequadas para esta prática. É preciso que os
orientadores da casa (monitores) sejam peritos nesta arte e não façam o mesmo
papel que alguns pais fizeram no passado: mandar-lhes para a igreja enquanto
ficam confortavelmente sentados tomando um mate. Comunidades terapêuticas que
não dispõe de um ambiente devocional sofrem com esta falta e não ajudam seus
residentes a fazerem este itinerário para dentro de si e para perto de um
referencial religioso onde a presença de um Poder Superior seja mais visível e
sensível. Conduzir para perto de Deus, regularmente, é tarefa essencial no
processo de recuperação.
L 2, 43 - Ficou no templo – interessar-se pelo mistério
O ambiente religioso, silencioso e carregado de símbolos tem
este poder de despertar nas pessoas certo interesse desconhecido e ainda
indecifrável. Já conversei com vários residentes em comunidades terapêuticas
que me disseram estar “despertando” para momentos de solidão, de quietude, bem
diferente dos tempos de ativa onde era praticamente impossível aquietar-se e
olhar para dentro de si. Em alguns destes centros de recuperação, tenho
incentivado que se estabeleça um tempo diário, que pode e deve ser breve no
começo, mas que eduque aos poucos a certo desejo escondido de estar face a face
com Deus, na forma em que é concebido. O fato de o menino Jesus ter ficado no
templo significa exatamente isto: “é bom estarmos aqui”, como disse São Pedro
no Monte da Transfiguração. Acordar a sensibilidade religiosa dormente nos
porões da agitação diária ajuda em muito o aprendizado saboroso de estar na
presença do Eterno e imutável, onde Deus não é mais um estranho, desconhecido,
sem ligames afetivos e prazerosos, mas um Deus amoroso que não nos julga e não
se esquece de nós.
Portanto, a prática de retiros espirituais, no silêncio e
com direção espiritual, além dos tempos preciosos do silêncio, da meditação e
da conversa cara a cara com o Criador, certamente ajudarão a predispor a alma,
tirando-lhe os afetos desordenados e lavando-a das impurezas acumuladas ao
longo dos tempos. Para longos períodos de vida desajustada serão necessários
outros longos períodos de silêncio e da prática do 11º passo (para aqueles que
conhecem e praticam os 12 passos de AA). Os mistérios do eterno são
insondáveis, mas sem uma proximidade com eles, os caminhos da vida serão
certamente mais amargos de espinhosos.
Lc 2, 46 - Ouvia e perguntava – responder-lhes
A
narração de São Lucas nos conta que o menino se interessava em aumentar seu
conhecimento, numa atitude de diálogo, de perguntas e respostas. Nossa
ingenuidade às vezes nos faz acreditar que Jesus já sabia tudo e que a vida era
uma simples encenação, o que não é verdade. Para a finalidade que estamos escrevendo,
é preciso repetir com firmeza a grande necessidade de formar a consciência
religiosa dos residentes. A grande maioria deles são como tabulas rasas no
conhecimento da própria fé, da Igreja a que pertencem e da doutrina religiosa.
O que acaba fazendo deles marionetes que movem conforme o vento e acabam se
convencendo que tudo o que fala de Deus é bom e que, por isso, tanto faz ir
aqui ou acolá, que dá na mesma, ou pior ainda, repetem como papagaios a
conhecida expressão “não dá nada”. O despertar espiritual passa necessariamente
por uma consciência melhor formada e por uma mente melhor instruída. Cabeça oca
e alma despreparada é terreno propício para a recaída de atitudes, caminho
conhecido de muitos e que leva aos abismos da derrota.
Uma das
minhas grandes preocupações no contato com os responsáveis pelo programa
terapêutico é que estas casas ofereçam literatura adequada para que os
residentes conheçam mais de perto a doença que está instalada em seus corpos,
mas que tenham também boa literatura que desperte os conteúdos, as regras e as
práticas de uma boa e fecunda espiritualidade. E isso se aplica igualmente aos
cuidadores que, por vezes, se convencem que, aquilo que aprenderam nos tempos
de sua residência é suficiente. Nivelar por baixo não faz crescer. Atiçar a
curiosidade e puxar pela mente só faz bem; em vez de duas louças, é mais
recomendável duas páginas a serem lidas e entendidas.
Lc 2, 49 - Devo estar aqui - deixá-los curtir
O
despertar espiritual leva a pessoa a fazer novas escolhas, a refazer velhos
caminhos, eleger novas prioridades e metas. Quando o menino Jesus foi
perguntado por que havia feito esta escolha de permanecer no Templo, sua
resposta foi emblemática: vocês não percebem que eu estou mudando?, que eu
preciso fazer novas escolhas, romper com certos comportamentos do passado? Não
estamos aqui falando ou sugerindo algo parecido com fundamentalismo religioso
ou fanatismo doutrinal. Pessoalmente estou convencido apenas que um despertar
espiritual exige bem mais tempo do que imaginamos e que precisa ser curtido em
fogo brando. A pressa é inimiga da perfeição. Mais ainda, a pressa deforma as
escolhas porque obscurece os caminhos e esconde as veredas. Quem dirige um
carro em alta velocidade, acaba por nem perceber as tonalidades do verde que
circundam a estrada. Os nove meses residenciais tem um significado maior que
“uma nova gestação”. Passar da espiritualidade do cronograma para a
espiritualidade do silêncio e, finalmente, para uma espiritualidade de atitudes
requer gradualmente o tempo do calendário, o tempo do espírito e os tempos de
Deus.
O
espírito de gratidão e a prática do voluntariado (gestos de bondade) no período
pós residencial certamente ajudarão em muito no aprofundamento e na
consolidação desta espiritualidade. Alguns dos que estudam os fenômenos da
drogadição e da recuperação, afirmam que são necessários ao menos três anos
para que se instale de forma mais consistente este novo estilo e vida. Por
isso, a vinculação com um centro espiritual, um local onde se possa recarregar
as baterias é necessário. Sem isso, as dificuldades se agigantam.
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