sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O DESPERTAR ESPIRITUAL - II. Pe. . Vitor Hugo Gerhard

            

5. O despertar espiritual como dom de Deus - 

                Quando digo que o despertar espiritual não é para todos e não são muitos os que alcançarão uma intensidade maior de vida interior, talvez alguns dos meus leitores se surpreendam com isso e até discordem da afirmação. Estou afirmando agora, e este é o tema central desta reflexão, que espiritualidade é DOM e não CONQUISTA. Não é por esforço incansável que alguém chegará a estágios mais elaborados na sua espiritualidade, a não ser como dom gratuito e iniciativa do próprio Deus, na forma em que o compreendemos. Estamos falando aqui da espiritualidade cristã do Novo Testamento, revelada por Jesus e deixada como Seu testamento pessoal. Para outras raízes espirituais, alguém deveria escrever outro texto. Vejamos algumas afirmações do próprio Jesus:

•             Ninguém vai ao Pai senão por mim - Jo 14, 6
•             Todo aquele que o Pai me dá, virá a mim e Eu nunca rejeitarei aquele que vem a mim-Jo 6, 37
•             Ninguém pode vir a mim se o Pai que me enviou não o atrair - Jo 6, 44
•             Ninguém conhece o Pai, a não ser o Filho e a quem o Filho quiser revelar - Mt 11, 27

Há um hino que se canta nas Igrejas e que diz o seguinte: “me chamaste para caminhar na vida Contigo; decidi para sempre seguir-te, não voltar atrás. Me puseste uma brasa no peito e uma flecha na alma; é difícil agora viver sem saudade de Ti... É isso: espiritualidade é chamado e resposta. Assim foi com o povo judeu na saída do Egito: alguns foram na frente, outros seguiram pela mesma estrada; alguns até idolatraram e outros foram “de arrasto”. São sempre graus diferentes de adesão e de vínculo espiritual. Assim também foi e continua sendo entre aqueles e aquelas que respondem com generosidade ao apelo da missão, dedicando-se aos mais variados serviços e ministérios, na Igreja e no mundo. Todos seguem adiante, mas com proximidade maior ou menor, com encantamento mais intenso ou mais periférico na relação pessoal com quem os chamou. Assim é também entre as famílias cristãs. Algumas delas (desejaria que fossem muitíssimas delas) testemunham que é possível, neste mundo dilacerado por discórdias, viver em comunhão com Deus e fazer disso um sinal de unidade. Outras tantas tem “o desejo do desejo”, como diria Inácio de Loyola, de viverem neste entrelaçamento e tirar dele a paz tão necessária em meio a tantas turbulências. Há outras famílias que seguem no rebanho e caminham como ovelhas sem pastor, na busca ansiosa de um sentido para a vida.

                Entre os adictos em recuperação, seja no período residência ou passado este, quando já estão de volta no convívio com os seus, este tema do despertar espiritual não é menos importante e decisivo na manutenção deste projeto de vida nova. Tenho encontrado “graduados e graduadas” (homens e mulheres que passaram pelo programa de recuperação em dependência química) e que desejam permanecer abstinentes e modificados em seus valores e virtudes, se perguntarem pelo “porque” ser tão difícil manter uma espiritualidade viva e eficaz... Já escrevi noutra ocasião e cito aqui: a parábola do semeador (Mt 13, 1-9) é emblemática e nos ajuda a entender as assim chamadas “moções espirituais” que se movem no interior das pessoas e que, dependendo da resposta, poderão das frutos os mais variados. A terra boa, os pedregulhos, a beira da estrada, os espinheiros... são os terrenos que possuímos; nós os recebemos assim. Em certo sentido, dependerá da nossa capacidade em sermos bons agricultores a preparar o solo para o plantio, favorecendo as condições propícias para o despertar espiritual, sem nunca esquecer que tudo é GRAÇA.

6.            Há algo que se possa fazer?

Lendo este já conhecido texto que nos foi deixado por São Lucas em seu Evangelho (Jesus aos 12 anos, perdido e achado no Templo), me pareceu oportuno e próprio para uma aplicação do nosso tema (despertar espiritual) à realidade dos adictos, tenham eles já passado pelo programa de recuperação em dependência química numa comunidade terapêutica ou estejam ainda curvados sob o jugo da drogadição. No meu pensar, costumo dizer que, “quando as lágrimas caem e os joelhos se dobram”, aí começa o caminho da vida nova. E isso pode acontecer nas sarjetas da vida ou nas terras benditas de uma comunidade terapêutica. O que desejo partilhar a seguir é um conjunto de atitudes que nos podem colocar a caminho nesta busca do despertar espiritual, sem esquecer que ele é DOM e GRAÇA. Entretanto, aquela outra parábola dos talentos podem nos sugerir que o Bom Deus, em Seu amor incondicional por nós, poderá nos favorecer com o alento de uma vida interior mais plena e a necessária consolação para então praticarmos com maior vitalidade o mandamento do amor. Vejamos este itinerário que a narração nos oferece:

Lc 2, 42 - Subiram a Jerusalém – conduzir e caminhar junto

A narração nos conta que Maria e José levavam o menino ao tempo, isto é, a família tinha uma prática religiosa regular. Certamente também frequentavam a sinagoga em Nazaré. Levar ao templo, freqüentar a Igreja, participar do culto parece ser uma condição favorável para o despertar espiritual e seu desenvolvimento. Nos contatos com os residentes nas comunidades terapêuticas, o que se encontra são pessoas que abandonaram as práticas religiosas e as muitas formas de piedade pessoal. Há um vazio religioso profundo, o que acaba por gerar um resfriamento das práticas religiosas e pelo próprio gosto do mundo religioso. É bem verdade que algumas Igrejas, em alguns lugares, não oferecem ambiente favorável, sobretudo aos mais jovens para estas práticas e para o envolvimento inclusive afetivo com a comunidade de fé.

O que desejamos aqui é sublinhar a necessidade de tomar os residentes pela mão e ensinar-lhes o caminho da fé, o gosto pela prática religiosa e as maneiras adequadas para esta prática. É preciso que os orientadores da casa (monitores) sejam peritos nesta arte e não façam o mesmo papel que alguns pais fizeram no passado: mandar-lhes para a igreja enquanto ficam confortavelmente sentados tomando um mate. Comunidades terapêuticas que não dispõe de um ambiente devocional sofrem com esta falta e não ajudam seus residentes a fazerem este itinerário para dentro de si e para perto de um referencial religioso onde a presença de um Poder Superior seja mais visível e sensível. Conduzir para perto de Deus, regularmente, é tarefa essencial no processo de recuperação.

L 2, 43 - Ficou no templo – interessar-se pelo mistério

O ambiente religioso, silencioso e carregado de símbolos tem este poder de despertar nas pessoas certo interesse desconhecido e ainda indecifrável. Já conversei com vários residentes em comunidades terapêuticas que me disseram estar “despertando” para momentos de solidão, de quietude, bem diferente dos tempos de ativa onde era praticamente impossível aquietar-se e olhar para dentro de si. Em alguns destes centros de recuperação, tenho incentivado que se estabeleça um tempo diário, que pode e deve ser breve no começo, mas que eduque aos poucos a certo desejo escondido de estar face a face com Deus, na forma em que é concebido. O fato de o menino Jesus ter ficado no templo significa exatamente isto: “é bom estarmos aqui”, como disse São Pedro no Monte da Transfiguração. Acordar a sensibilidade religiosa dormente nos porões da agitação diária ajuda em muito o aprendizado saboroso de estar na presença do Eterno e imutável, onde Deus não é mais um estranho, desconhecido, sem ligames afetivos e prazerosos, mas um Deus amoroso que não nos julga e não se esquece de nós.

Portanto, a prática de retiros espirituais, no silêncio e com direção espiritual, além dos tempos preciosos do silêncio, da meditação e da conversa cara a cara com o Criador, certamente ajudarão a predispor a alma, tirando-lhe os afetos desordenados e lavando-a das impurezas acumuladas ao longo dos tempos. Para longos períodos de vida desajustada serão necessários outros longos períodos de silêncio e da prática do 11º passo (para aqueles que conhecem e praticam os 12 passos de AA). Os mistérios do eterno são insondáveis, mas sem uma proximidade com eles, os caminhos da vida serão certamente mais amargos de espinhosos.

Lc 2, 46 - Ouvia e perguntava – responder-lhes

                A narração de São Lucas nos conta que o menino se interessava em aumentar seu conhecimento, numa atitude de diálogo, de perguntas e respostas. Nossa ingenuidade às vezes nos faz acreditar que Jesus já sabia tudo e que a vida era uma simples encenação, o que não é verdade. Para a finalidade que estamos escrevendo, é preciso repetir com firmeza a grande necessidade de formar a consciência religiosa dos residentes. A grande maioria deles são como tabulas rasas no conhecimento da própria fé, da Igreja a que pertencem e da doutrina religiosa. O que acaba fazendo deles marionetes que movem conforme o vento e acabam se convencendo que tudo o que fala de Deus é bom e que, por isso, tanto faz ir aqui ou acolá, que dá na mesma, ou pior ainda, repetem como papagaios a conhecida expressão “não dá nada”. O despertar espiritual passa necessariamente por uma consciência melhor formada e por uma mente melhor instruída. Cabeça oca e alma despreparada é terreno propício para a recaída de atitudes, caminho conhecido de muitos e que leva aos abismos da derrota.

                Uma das minhas grandes preocupações no contato com os responsáveis pelo programa terapêutico é que estas casas ofereçam literatura adequada para que os residentes conheçam mais de perto a doença que está instalada em seus corpos, mas que tenham também boa literatura que desperte os conteúdos, as regras e as práticas de uma boa e fecunda espiritualidade. E isso se aplica igualmente aos cuidadores que, por vezes, se convencem que, aquilo que aprenderam nos tempos de sua residência é suficiente. Nivelar por baixo não faz crescer. Atiçar a curiosidade e puxar pela mente só faz bem; em vez de duas louças, é mais recomendável duas páginas a serem lidas e entendidas.

Lc 2, 49 - Devo estar aqui - deixá-los curtir

                O despertar espiritual leva a pessoa a fazer novas escolhas, a refazer velhos caminhos, eleger novas prioridades e metas. Quando o menino Jesus foi perguntado por que havia feito esta escolha de permanecer no Templo, sua resposta foi emblemática: vocês não percebem que eu estou mudando?, que eu preciso fazer novas escolhas, romper com certos comportamentos do passado? Não estamos aqui falando ou sugerindo algo parecido com fundamentalismo religioso ou fanatismo doutrinal. Pessoalmente estou convencido apenas que um despertar espiritual exige bem mais tempo do que imaginamos e que precisa ser curtido em fogo brando. A pressa é inimiga da perfeição. Mais ainda, a pressa deforma as escolhas porque obscurece os caminhos e esconde as veredas. Quem dirige um carro em alta velocidade, acaba por nem perceber as tonalidades do verde que circundam a estrada. Os nove meses residenciais tem um significado maior que “uma nova gestação”. Passar da espiritualidade do cronograma para a espiritualidade do silêncio e, finalmente, para uma espiritualidade de atitudes requer gradualmente o tempo do calendário, o tempo do espírito e os tempos de Deus.


                O espírito de gratidão e a prática do voluntariado (gestos de bondade) no período pós residencial certamente ajudarão em muito no aprofundamento e na consolidação desta espiritualidade. Alguns dos que estudam os fenômenos da drogadição e da recuperação, afirmam que são necessários ao menos três anos para que se instale de forma mais consistente este novo estilo e vida. Por isso, a vinculação com um centro espiritual, um local onde se possa recarregar as baterias é necessário. Sem isso, as dificuldades se agigantam.

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