5.1 - Era-lhes obediente - quebrar o orgulho
São
Lucas nos conta que o menino voltou para casa com seus pais e lhes era
obediente. Bem, iniciemos dizendo que, para o Filho de Deus, ser obediente,
tornou-se o exemplo mais potente de quebra de orgulho que se possa esperar de
um simples mortal como nós. O despertar espiritual nos leva necessariamente a
duvidar de nossos desejos, planos, interesses, sobretudo quando não os confrontamos
com a vontade de Deus. A espiritualidade nos leva a trilhar caminhos
surpreendentes, sobretudo se nos livramos dos fardos pesados de nossas vontades
enferrujadas, nossos interesses anacrônicos, nossos desejos pequenos e
imediatos. Voltar para casa e permanecer obediente é tarefa para grandes
espíritos. A obediência de Jesus, como bem o sabemos, levou-O até os degraus da
crucificação. Talvez seja este o altar mais alto de nosso peregrinar nesta
terra: chegarmos aos pés da cruz, abraçá-la, não importando como chegamos,
importando apenas que viemos. Já disse antes: quando a lágrimas vertem e os
joelhos se dobram então é que começa o despertar espiritual mais verdadeiro,
intenso e profundo. Aqui está a chave capaz de abrir as portas para este mundo
fantástico da comunhão com Deus. Tornar-se obediente à vontade do Pai é tarefa
a ser gestada nos vazos comunicantes mais profundos de um coração aberto à
novidade do Espírito. É quando já não importa mais estar aqui ou acolá, ter
isso ou aquilo, ser retribuído ou não; é quando posso dizer como São Paulo:
fiz-me tudo para todos, sou um servo inútil. Todavia isso somente se aprende
queimando nossas resistências, nossas reservas e pequenos caprichos.
Lc 2, 52 - Crescia em sabedoria - no discernimento
Neste
último versículo da narração, São Lucas nos oferece uma trilogia adequada à
realidade dos adictos em recuperação. Em primeiro lugar, é preciso dedicar-se
ao treinamento do discernimento na busca daquela sabedoria que procede do alto.
Inteligência tem tudo a ver com neurônios e capacidade intelectual.
Inteligência é um dos sete dons do Espírito Santo, mas que está atrelada às
nossas capacidades neuro-mentais. Sabedoria é outra coisa. Ela procede do
coração de Deus e se localiza no universo das nossas relações, da nossa
capacidade de viver e conviver neste mundo permeado de turbulências. Sabedoria
é o resultado daquele processo profundo, onde nos colocamos despidos de nossos
preconceitos, buscando apenas compreender a vontade de Deus a nosso respeito e
forças para cumpri-la. Sabedoria e discernimento estão associados e são
inseparáveis. Sabedoria é a grande descoberta que o discernimento nos
proporciona e que nos projeta para descobertas ainda maiores. A sabedoria,
também um dos sete dons do Espírito Santo, é o resultado, em primeira mão da
bondade e graça divina; depois, da nossa capacidade em permanecermos na escuta
de Sua voz.
Lc 2, 52 - Crescia em estatura - no coração
O termo
estatura utilizado por São Lucas certamente não se refere ao tamanho do corpo
ou sua altura em centímetros. A estatura humana a que se o texto diz respeito
ao crescimento humano de uma pessoa que se faz grande no coração, na bondade,
na compaixão. Estas foram características sempre visíveis nas práticas de
Jesus, ao longo de sua vida pública. O Papa Francisco não se cansa de repetir
“não tenham medo da bondade e da ternura”. Nestes tempos de resfriamento dos
sentimentos humanos e no endurecimento das relações humanas, nada mais
necessário para a vida do adicto do que cultivar os bons sentimentos que, por
um longo tempo, ficaram soterrados pela casca grossa da adicção e seus efeitos.
Atitudes de bondade e ternura deveriam tornar-se tão naturais na vida de um
adicto que as pessoas ao seu redor pudessem referir-se a ele (a ela) como
alguém que transpira bondade e transmite acolhimento. A estatura de uma pessoa
não se mede por centímetros, mas pela envergadura do seu humanismo e sua
consequente capacidade de gerar unidade entre os seres humanos. O que vem de
Deus não nos isola e não nos afasta dos demais. Pelo contrário, a vida interior
tem esta força centrípeda, de atrair para junto de si.
Por
isso é tão importante que o adicto em recuperação, após o período residencial
numa comunidade terapêutica, possa desenvolver um trabalho na linha do voluntariado,
para exercitar-se na bondade e na gratidão pela vida reconquistada. A ruptura
com o egoismo somente será verdadeira se for acompanhada de gestos concretos de
serviço gratuito, generoso e desprendido, realizado sobretudo aos mais fracos e
desprotegidos. O tamanho de um homem está na sua capacidade de doar-se.
Lc 2, 52 - Crescia em graça -
na alma
Chegamos finalmente à grande meta de vida de qualquer
cristão e, de modo particular, do adicto em recuperação: viver na graça e
segundo a graça divina. Usando a palavra mais adequada, mesmo que nem sempre
bem aceita, viver em santidade e justiça, diante de Deus e diante dos homens.
Este é o desejo escondido no mais profundo da alma humana: percorrer o caminho
da conversão para viver segundo os critérios de Deus e não dos homens. A imensa
alegria de um cristão é saber-se acolhido, aceito e embalado pelos braços do
criador, inclinando a cabeça em Seu regaço.
Esta visão cristã da vida em Deus não é uma realidade a ser
esperada para ser vivida na eternidade, após a morte. Viver em comunhão com
Deus é possível pois “o Reino de Deus já está no meio de vós”, como nos disse o
próprio Jesus (Lc 17, 21). Tendo alcançado este despertar espiritual, cabe ao
adicto vivê-lo intensamente e partilhá-lo com os demais (12º passo de AA),
testemunhando ao menos duas grandes verdades: a) a vida em Deus é possível,
mesmo nas circunstâncias adversas; b) vivendo assim, a droga não tem lugar,
pois ela é apenas um suplemento alimentar para uma alma vazia, faminta e
sequiosa.
7. Um palavra
final
Naquilo que entendo como processo do despertar espiritual,
estou convencido que algumas exigências precisam ser levadas em conta:
• Uma
comunidade terapêutica sem uma capela ou oratório, não é recomendável
• Uma
comunidade terapêutica que permite o tabagismo, não é recomendável
• Uma
comunidade terapêutica onde os cuidadores (monitores) não são os protagonistas
na espiritualidade, não é recomendável
• Uma
comunidade terapêutica sem identidade religiosa em seu perfil, deixando claro
qual o “caminho espiritual” oferecido no programa terapêutico, não é
recomendável
• Uma
comunidade terapêutica que não faz o acompanhamento pessoal de seus graduados,
por longo tempo, não é recomendável
• Uma
comunidade terapêutica que não desenvolve o espírito de serviço e de
voluntariado como gratidão pela vida renovada, não é recomendável
• Uma
comunidade terapêutica que não dispõe de uma boa literatura e faça seus
residentes utilizarem este recurso para o aprimoramento da vida, não é
recomendável
• Uma
comunidade terapêutica que tem “dono”, não é recomendável
Como sou um homem otimista e crente na pessoa humana e na
sua capacidade de transformação, estou convencido que todas as nossas
fragilidades e contradições não são impedimento para se alcançar este estágio de
vida espiritual que esboçamos aqui pela simples razão de sermos “amados no
Senhor” e não sermos órfãos. Temos um pai em Deus, uma mãe em Maria e um monte
de irmãos e irmãs, os quais chamamos santos e santas, e que encontraram ao
longo da existência os caminhos para o despertar espiritual. Que o digam
Francisco de Assis, Rita de Cássia, Madre Tereza de Calcutá, entre tantos
outros. “Abre bem as portas do teu coração, e deixa a luz do céu entrar”...
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