domingo, 17 de janeiro de 2016

O DESPERTAR ESPIRITUAL - III. Pe. . Vitor Hugo Gerhard


 5.1 - Era-lhes obediente - quebrar o orgulho 

                São Lucas nos conta que o menino voltou para casa com seus pais e lhes era obediente. Bem, iniciemos dizendo que, para o Filho de Deus, ser obediente, tornou-se o exemplo mais potente de quebra de orgulho que se possa esperar de um simples mortal como nós. O despertar espiritual nos leva necessariamente a duvidar de nossos desejos, planos, interesses, sobretudo quando não os confrontamos com a vontade de Deus. A espiritualidade nos leva a trilhar caminhos surpreendentes, sobretudo se nos livramos dos fardos pesados de nossas vontades enferrujadas, nossos interesses anacrônicos, nossos desejos pequenos e imediatos. Voltar para casa e permanecer obediente é tarefa para grandes espíritos. A obediência de Jesus, como bem o sabemos, levou-O até os degraus da crucificação. Talvez seja este o altar mais alto de nosso peregrinar nesta terra: chegarmos aos pés da cruz, abraçá-la, não importando como chegamos, importando apenas que viemos. Já disse antes: quando a lágrimas vertem e os joelhos se dobram então é que começa o despertar espiritual mais verdadeiro, intenso e profundo. Aqui está a chave capaz de abrir as portas para este mundo fantástico da comunhão com Deus. Tornar-se obediente à vontade do Pai é tarefa a ser gestada nos vazos comunicantes mais profundos de um coração aberto à novidade do Espírito. É quando já não importa mais estar aqui ou acolá, ter isso ou aquilo, ser retribuído ou não; é quando posso dizer como São Paulo: fiz-me tudo para todos, sou um servo inútil. Todavia isso somente se aprende queimando nossas resistências, nossas reservas e pequenos caprichos.

Lc 2, 52 - Crescia em sabedoria - no discernimento

                Neste último versículo da narração, São Lucas nos oferece uma trilogia adequada à realidade dos adictos em recuperação. Em primeiro lugar, é preciso dedicar-se ao treinamento do discernimento na busca daquela sabedoria que procede do alto. Inteligência tem tudo a ver com neurônios e capacidade intelectual. Inteligência é um dos sete dons do Espírito Santo, mas que está atrelada às nossas capacidades neuro-mentais. Sabedoria é outra coisa. Ela procede do coração de Deus e se localiza no universo das nossas relações, da nossa capacidade de viver e conviver neste mundo permeado de turbulências. Sabedoria é o resultado daquele processo profundo, onde nos colocamos despidos de nossos preconceitos, buscando apenas compreender a vontade de Deus a nosso respeito e forças para cumpri-la. Sabedoria e discernimento estão associados e são inseparáveis. Sabedoria é a grande descoberta que o discernimento nos proporciona e que nos projeta para descobertas ainda maiores. A sabedoria, também um dos sete dons do Espírito Santo, é o resultado, em primeira mão da bondade e graça divina; depois, da nossa capacidade em permanecermos na escuta de Sua voz.

Lc 2, 52 - Crescia em estatura - no coração

                O termo estatura utilizado por São Lucas certamente não se refere ao tamanho do corpo ou sua altura em centímetros. A estatura humana a que se o texto diz respeito ao crescimento humano de uma pessoa que se faz grande no coração, na bondade, na compaixão. Estas foram características sempre visíveis nas práticas de Jesus, ao longo de sua vida pública. O Papa Francisco não se cansa de repetir “não tenham medo da bondade e da ternura”. Nestes tempos de resfriamento dos sentimentos humanos e no endurecimento das relações humanas, nada mais necessário para a vida do adicto do que cultivar os bons sentimentos que, por um longo tempo, ficaram soterrados pela casca grossa da adicção e seus efeitos. Atitudes de bondade e ternura deveriam tornar-se tão naturais na vida de um adicto que as pessoas ao seu redor pudessem referir-se a ele (a ela) como alguém que transpira bondade e transmite acolhimento. A estatura de uma pessoa não se mede por centímetros, mas pela envergadura do seu humanismo e sua consequente capacidade de gerar unidade entre os seres humanos. O que vem de Deus não nos isola e não nos afasta dos demais. Pelo contrário, a vida interior tem esta força centrípeda, de atrair para junto de si.

                Por isso é tão importante que o adicto em recuperação, após o período residencial numa comunidade terapêutica, possa desenvolver um trabalho na linha do voluntariado, para exercitar-se na bondade e na gratidão pela vida reconquistada. A ruptura com o egoismo somente será verdadeira se for acompanhada de gestos concretos de serviço gratuito, generoso e desprendido, realizado sobretudo aos mais fracos e desprotegidos. O tamanho de um homem está na sua capacidade de doar-se.

Lc 2, 52 - Crescia em graça           - na alma

Chegamos finalmente à grande meta de vida de qualquer cristão e, de modo particular, do adicto em recuperação: viver na graça e segundo a graça divina. Usando a palavra mais adequada, mesmo que nem sempre bem aceita, viver em santidade e justiça, diante de Deus e diante dos homens. Este é o desejo escondido no mais profundo da alma humana: percorrer o caminho da conversão para viver segundo os critérios de Deus e não dos homens. A imensa alegria de um cristão é saber-se acolhido, aceito e embalado pelos braços do criador, inclinando a cabeça em Seu regaço.

Esta visão cristã da vida em Deus não é uma realidade a ser esperada para ser vivida na eternidade, após a morte. Viver em comunhão com Deus é possível pois “o Reino de Deus já está no meio de vós”, como nos disse o próprio Jesus (Lc 17, 21). Tendo alcançado este despertar espiritual, cabe ao adicto vivê-lo intensamente e partilhá-lo com os demais (12º passo de AA), testemunhando ao menos duas grandes verdades: a) a vida em Deus é possível, mesmo nas circunstâncias adversas; b) vivendo assim, a droga não tem lugar, pois ela é apenas um suplemento alimentar para uma alma vazia, faminta e sequiosa.

7.            Um palavra final

Naquilo que entendo como processo do despertar espiritual, estou convencido que algumas exigências precisam ser levadas em conta:

•             Uma comunidade terapêutica sem uma capela ou oratório, não é recomendável
•             Uma comunidade terapêutica que permite o tabagismo, não é recomendável
•             Uma comunidade terapêutica onde os cuidadores (monitores) não são os protagonistas na espiritualidade, não é recomendável
•             Uma comunidade terapêutica sem identidade religiosa em seu perfil, deixando claro qual o “caminho espiritual” oferecido no programa terapêutico, não é recomendável
•             Uma comunidade terapêutica que não faz o acompanhamento pessoal de seus graduados, por longo tempo, não é recomendável
•             Uma comunidade terapêutica que não desenvolve o espírito de serviço e de voluntariado como gratidão pela vida renovada, não é recomendável
•             Uma comunidade terapêutica que não dispõe de uma boa literatura e faça seus residentes utilizarem este recurso para o aprimoramento da vida, não é recomendável
•             Uma comunidade terapêutica que tem “dono”, não é recomendável

Como sou um homem otimista e crente na pessoa humana e na sua capacidade de transformação, estou convencido que todas as nossas fragilidades e contradições não são impedimento para se alcançar este estágio de vida espiritual que esboçamos aqui pela simples razão de sermos “amados no Senhor” e não sermos órfãos. Temos um pai em Deus, uma mãe em Maria e um monte de irmãos e irmãs, os quais chamamos santos e santas, e que encontraram ao longo da existência os caminhos para o despertar espiritual. Que o digam Francisco de Assis, Rita de Cássia, Madre Tereza de Calcutá, entre tantos outros. “Abre bem as portas do teu coração, e deixa a luz do céu entrar”...


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